O insaciável apetite humano por carne: o grande responsável pelo surgimento das pandemias

Trecho do novo livro “Pandemia – saúde global e escolhas pessoais” escrito pela zoóloga Cynthia Schuck Paim e por Wladimir J. Alonso, cujo download é gratuito.

Em nossas interações com os animais selvagens, domésticos, de fazenda e comensais, patógenos de origem animal hoje bem conhecidos foram importados: do consumo de carcaças abandonadas e da caça importamos as tênias e, provavelmente, a hepatite e a poliomielite através da caça e consumo dos nossos parentes mais próximos, os primatas. Os animais de companhia nos trouxeram a raiva. Do contato com animais de fazenda importamos o sarampo, a Salmonella, a varíola (talvez a  doença mais terrível que já existiu, e que afortunadamente foi erradicada quarenta anos atrás) e o antrax (que se tornou famoso por seu possível uso como arma biológica); os ratos nos trouxeram a peste bubônica, a hantavirose e o tifo epidêmico. 

Os seres humanos foram provavelmente infectados com os precursores do HIV ao caçar chimpanzés para comer. Acredita-se que a origem da maioria dos surtos de Ebola — que ainda acontecem, principalmente na África Central — está associada ao consumo da carne de animais silvestres.

Quando ouvirem sobre a descoberta de Salmonella ou surto de E. coli em frutas e vegetais, podem ter certeza que elas provém do intestinos de animais, atingindo outros alimentos por uso de esterco como adubo e contaminação de corpos d’água com dejetos da produção pecuária ou pelo contato (direto ou indireto) com produtos de origem animal.

Os trechos acima foram extraídos do novo livro Pandemia – saúde global e escolhas pessoais escrito pela zoóloga Cynthia Schuck -Paim e por Wladimir J. Alonso, cujo download é gratuito. Obra de leitura obrigatória para todos aqueles que desejam compreender porque chegamos aqui –  e o que fazer para não enfrentarmos outra pandemia em questão de meses. 

A relação do consumo humano de alimentos derivados de animais e pandemias já é uma velha conhecida da comunidade científica. Tentativas de chamar a atenção para o problema não faltam. Em 2017, por exemplo, mais de 200 cientistas assinaram uma carta aberta endereçada a Organização Mundial da Saúde com o título Produção industrial de animais: uma ameaça a saúde pública global

Trecho do novo livro “Pandemia – saúde global e escolhas pessoais” escrito pela zoóloga Cynthia Schuck Paim e por Wladimir J. Alonso, cujo download é gratuito.

Entre os pontos abordados estavam a crescente resistência a antibióticos entre humanos e animais de criação, colapso climático ligado ao desmatamento para produção de grãos e gado, aumento da temperatura global e a iminência de mutações virais com potencial catastrófico para a população mundial.
Nada foi feito.
Não, pelo menos, com impacto efetivo.
Continuamos comendo alimentos derivados de animais num volume per/capita nunca antes visto. Estamos colapsando o planeta por conta do nosso imenso apetite por carne.

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Com o covid-19 impondo uma nova realidade global, nunca foi tão urgente falar sobre isso: se não mudarmos o modo de produção de alimentos e a dieta dos mais de 7 bilhões de habitantes do planeta, a próxima pandemia estará nos esperando logo ali na esquina.

Em 2020, uma fazenda de frangos na Alemanha registrou casos da gripe aviária subtipo H5N8. Nas Filipinas, milhares de aves foram abatidas por estarem com  H5N6. Nos EUA, 3 fazendas no Estado da Carolina do Norte foram foco de gripe aviária H7N3 que atingiu mais de 90 mil perus.

PODCAST VAI SE FOOD: DIETA PANDÊMICA

Para tratar da relação entre produção de animais para consumo humano e surgimento de pandemias de maneira clara e assertiva, gravei um episódio do meu podcast com Cynthia Schuck-Paim.

Como escreveu a jornalista argentina Soledad Barruti em seu excelente texto Nuggets e morcegos: como cozinhamos as pandemias,

Não devemos temer os mísseis, mas os vírus”, disse Bill Gates em uma palestra no Ted Talk em 2015, depois que o ebola quebrou os limites corporais de uma espécie de morcego, em 2014, para se converter em um pesadelo para os seres humanos.

“É uma emergência”, “Precisamos nos preparar”, “Precisamos controlar os vírus”: os documentos oficiais de várias agências das Nações Unidas, organizações globais como a Fundação Gates e vários governos estão cheios de advertências semelhantes. Mas nada foi feito para impedir a covid-19. Talvez porque em nenhum desses espaços de poder houve intenção de nomear de maneira clara e contundente o principal fator desencadeante dessas doenças: a relação abusiva e predatória que estabelecemos com a natureza, em geral, e com os outros animais, em particular.

Vacas, porcos, galinhas, morcegos, não importa de qual animal estejamos falando. Se não os extinguimos com destruição de seus habitats, os engaiolamos, acumulamos, mutilamos, transportamos, engordamos, medicamos e deformamos para aumentar sua produtividade. Forçamos os limites de seus corpos e anulamos seus instintos como se fossem coisas, por meio de técnicas ensinadas nas universidades, repetidas em conferências empresariais e testadas em laboratórios. Um negócio de bilhões de dólares.

A questão também é global: por minuto, por dia, nos 365 dias por ano, quarenta campos de futebol de natureza desaparecem. O que assume seu lugar? Vacas e monoculturas de soja e milho para alimentar outras vacas em currais, porcos, galinhas, frangos. Um terço da terra é cultivada como alimento para animais de criação industrial. Duas ou três produções vegetais para quatro ou cinco tipos de animais.

A biodiversidade é o único controle de pragas que existe. Uma barreira tampão. Uma rede que destruímos, deixando-nos expostos à intempérie, entre o zumbindo de mosquitos com malária, dengue, febre amarela, zika. De barbeiros com Chagas. De roedores com hantavírus. De cervos com Lyme. No Amazonas, o número de mordidas de morcegos aumentou nove vezes nas áreas de desmatamento nos últimos anos.

E, assim, chegamos aos morcegos e tatus.

Os animais selvagens, sem lugar para morar, ariscos, se aproximam perigosamente uns dos outros. E, eventualmente, eles se aproximam dos animais amontoados nas fazendas industriais. Ou se tornam espécimes vendidos em mercados de animais vivos, onde os vírus se expressam e sofrem mutações — e as bactérias também. E então, nas cidades do mundo todo, hotéis, teatros, escolas se tornam hospitais. E a vida cotidiana se detém. E parece que o mundo mudou. Mas não. Os supermercados estão abertos, e fazemos filas eternas para comprar as coisas (nuggets, ovos, iogurte) com as quais continuamos a cozinhar pandemias que mais tarde nos parecerão inevitáveis.”

Se existe alguma boa notícia? Sim: escolhas alimentares pessoais podem moldar um novo mundo. Um mundo mais sustentável e saudável. Mas para que isso aconteça, a informação sobre as verdadeiras razões para o aparecimento de pandemias precisa ser disseminada – e com mais rapidez do que o próprio vírus. 

Abaixo, alguns temas abordados no livro de Cynthia Schuck-Paim que, de novo, recomendo muito a leitura.

ORIGEM DOS VÍRUS: NÃO É EXCLUSIVIDADE DA CHINA

Trecho do novo livro “Pandemia – saúde global e escolhas pessoais” escrito pela zoóloga Cynthia Schuck Paim e por Wladimir J. Alonso, cujo download é gratuito.

  • Sistemas intensivos de criação de animais, também conhecidos como fazendas industriais, criaram o ambiente perfeito para o surgimento de cepas virais altamente patogênicas, junto com o meio ideal de infecção de seres humanos. As condições de aglomeração sem precedentes são, sem dúvida, as principais causas do surgimento e propagação de patógenos em populações de animais de produção, permitindo a transmissão cada vez mais frequente entre essas espécies e os seres humanos.
  • O confinamento de um grande número de animais em altas densidades em ambientes fechados, como é típico desses sistemas, promove o desenvolvimento de altos níveis de patogenicidade de várias formas. Primeiro, ao facilitar a movimentação rápida de várias cepas de vírus de animal para animal e a consequente mistura e recombinação do seu material genético.
  • Animais em fazendas industriais são muito suscetíveis à infecção, permitindo aos patógenos se multiplicar rapidamente. Altos níveis de poluentes aéreos, como amônia e poeira fecal, que resultam naturalmente da presença do grande volume de excrementos dos animais confinados, são frequentemente encontrados nessas instalações fechadas. A função respiratória dos animais e suas primeiras barreiras de defesa contra infecções acabam sendo comprometidas.
  • Quanto maior o estresse ao qual um animal é submetido, maior é a probabilidade que altos níveis de patógenos sejam encontrados em suas fezes
  • O processo de intensificação teve um grande impacto na saúde dos animais, que agora padecem rotineiramente de várias doenças. Muitas delas são chamadas de “doenças de produção”. A maioria das galinhas poedeiras sofre de osteoporose e fraturas ósseas no final de suas vidas: sua fisiologia foi tão pressionada para produzir mais ovos que uma grande proporção de cálcio é removida de seus ossos. Frangos apresentam diversas anormalidades articulares e claudicação. Por ganharem peso muito rapidamente, seus ossos e órgãos internos não conseguem acompanhar o ritmo de crescimento; a falência cardíaca e insuficiência respiratória também são comuns.
  • A associação entre maior produtividade, deficiência imunológica e suscetibilidade a doenças já foi de fato verificada em várias espécies como frangos, porcos, gado de corte e vacas leiteiras.
PORCOS E GALINHAS: HOSPEDEIROS INTERMEDIÁRIOS

Trecho do novo livro “Pandemia – saúde global e escolhas pessoais” escrito pela zoóloga Cynthia Schuck Paim e por Wladimir J. Alonso.

  • As condições perfeitas para a seleção e propagação das mutações que possibilitaram a contaminação e propagação eficiente nos seres humanos estão presentes nos hospedeiros intermediários entre as aves aquáticas e os seres humanos: as galinhas e porcos que criamos para consumo.
  • Os porcos são especialmente aptos como hospedeiros intermediários destes vírus já que seu trato respiratório superior contém receptores tanto para o vírus da influenza aviária quanto para o vírus suíno/humano.
  • A mistura frequente de uma alta diversidade de patógenos de espécies selvagens e domésticas, em um ambiente de estresse agudo para animais mantidos em condições sanitárias precárias, onde hospedeiros de várias espécies se encontram, criam as condições ideais para o surgimento de novos patógenos que podem infectar seres humanos, seja através de uma ferida aberta, da contaminação cruzada de outros alimentos, ou pelo ar, através da aerossolização de material orgânico.
  • Quanto mais perto estivermos de um outro organismo em termos evolutivos, mais fácil será para esse organismo nos infectar. A razão pela qual infecções de origem alimentar são frequentemente associadas a produtos de origem animal: os seres humanos são muito mais próximos, evolutivamente, de animais do que de plantas.
RESISTÊNCIA A ANTIBIÓTICOS

Trecho do novo livro “Pandemia – saúde global e escolhas pessoais” escrito pela zoóloga Cynthia Schuck Paim e por Wladimir J. Alonso.

  • Mais de 70% dos antibióticos vendidos no mundo não são usados em pessoas, mas em animais criados em fazendas intensivas.
  • Nesses sistemas, o objetivo principal dos antimicrobianos não é o tratamento de animais doentes. Na verdade, eles são rotineiramente usados para outros fins. Primeiro, os antibióticos são amplamente usados para promover o crescimento dos animais de produção, sendo adicionados à ração ou a água em doses sub-terapêuticas (doses mais baixas que as prescritas para tratamento).
  • Os mecanismos através dos quais os antibióticos fazem os animais crescerem mais não são inteiramente conhecidos, mas algumas pesquisas sugerem que eles agem matando uma fração das bactérias intestinais que competem por nutrientes com os animais, além de matar bactérias intestinais nocivas que desaceleram seu crescimento ao causar doenças subclínicas (doenças sem sintomas evidentes). A idéia por trás do uso de antibióticos como promotores do crescimento é controlar a flora bacteriana dos animais para tornar sua digestão mais eficiente, usando toda a energia possível para o crescimento.

    Trecho do novo livro “Pandemia – saúde global e escolhas pessoais” escrito pela zoóloga Cynthia Schuck Paim e por Wladimir J. Alonso.

     

  • Antibióticos também são usados profilaticamente para prevenir infecções e garantir que os animais sobrevivam até a idade do abate sob as condições existentes nos sistemas de produção intensiva.
  • Países como a China, o Brasil e o Quênia, onde a produção de carne aumentou drasticamente nas últimas décadas, são, atualmente, hotspots de resistência antimicrobiana na indústria pecuária. De uma forma geral, do ano 2000 ao ano 2018, a proporção de antibióticos com taxas de resistência maior do que 50% aumentou três vezes em galinhas e porcos  —  atualmente, cerca de um terço dos antibióticos já não funcionam 50% das vezes em que são usados em frangos, enquanto um quarto dos antibióticos não funciona 50% das vezes em porcos. Essas altas taxas de resistência estão sendo agora observadas nos antibióticos mais usados em animais, muitos dos quais são essenciais para tratar humanos também.

    Trecho do novo livro “Pandemia – saúde global e escolhas pessoais” escrito pela zoóloga Cynthia Schuck-Paim

     

  • O poder terapêutico dos antibióticos no combate a infecções – também entre humanos – está se erodindo com uma velocidade alarmante. O surgimento de bactérias com resistência antimicrobiana é, atualmente, considerado uma das maiores ameaças à saúde global. 
  • Grande parte dos patógenos que causam muitos problemas médicos graves, ou complicações dessas condições – como a tuberculose, várias doenças sexualmente transmissíveis, pneumonias, infecções urinárias e hospitalares – tornaram-se resistentes a uma ampla gama de antibióticos. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS) “o mundo está caminhando para uma era pós-antibióticos, na qual infecções comuns poderão novamente matar”.
  • Cepas de bactérias resistentes a vários antibióticos, incluindo espécies de bactérias responsáveis por casos de broncopneumonia, foram identificadas em amostras de carne de porco e frango vendidas em 7  supermercados tradicionais no estado de São Paulo.
  • Nos  Estados Unidos, 75% das bactérias encontradas pelo FDA (a agência equivalente à EMA na Europa ou ANVISA no Brasil) em carnes vendidas em supermercados eram resistentes a antibióticos  

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